Já nos disse Barthes que uma das características constantes de toda a mitologia burguesa é a incapacidade de imaginar o outro. Este outro, ou melhor, esta imagem do outro, no caso do Imigrante, e mais especificamente a do Imigrante indocumentado, ganha na Europa proporções preocupantes na eminência de uma crise social profunda e é precisamente no campo das representações colectivas que é necessário, hoje mais do que nunca, convencer e vencer.
Dos campos políticos europeus que passaram e permanecem na governação podemos dizer que assumem, desanuviadamente, a sua visão utilitarista em relação à imigração, da social-democracia (em falência ideológica) à direita conservadora, passando pelos neoliberais, a diferença fica-se pela têmpera discursiva. Esse utilitarismo está estampado nos discursos oficiais e legislação dos diferentes Estados assim como nos vários acordos europeus. Está no tratado de Amesterdão e está, de forma sombria, na directiva de retorno. Está na interpretação dos fluxos de imigração como repositores ou excedentes do plano económico assim como na estratégia europeia que tenta limitar a imigração ilegal a partir de instrumentos legais e policiais comunitários[1] e no intensificar do aliciamento financeiro aos países de origem de forma a serem estes a estabelecer o primeiro tampão às correntes migratórias. É, podemos dizer, uma visão de proprietário, mas de um proprietário que lida com um comércio rebelde, insubmisso, que teima em desobedecer as leis de ouro do mercado e que é preciso disciplinar.
No caso português a melhor maneira de percebermos o utilitarismo do Estado é avançarmos com uma questão simples: o que é necessário a um estrangeiro para viver legalmente em Portugal, com os direitos e deveres que a lei lhe consagra? A resposta governamental é crua: é preciso que trabalhe (os que possuem rendimento próprio são outra história). Esta resposta é a base do mito do mercado na imigração. Os relatórios de necessidade de mão-de-obra, as autorizações de permanência e a exigência de um contracto de trabalho para as regularizações extraordinárias são exemplos claros, os imigrantes trabalham, não como um meio para a sua própria criação e emancipação mas como um fim utilitário que varia consoante as necessidades de quem os recebe. O trabalho, neste caso, mais que uma função ou uma utilidade é antes uma acepção, ele abarca um sentido de totalidade para lá da qual o imigrante não existe, simplesmente não interessa e mais, pesa. E, claro, lá está o mercado que regula as necessidades e os excessos, num presente imutável e privado de história.
É essa a mensagem que Vieira da Silva transmite quando anuncia a redução das quotas mas, neste caso, com um duplo engodo. O primeiro reside na recusa em aceitar o papel estrutural ocupado pelos imigrantes indocumentados na economia (Vieira da Silva sabe bem a quem interessa manter esta situação) defendendo assim a fiabilidade do sistema das quotas que toda a gente já reconhece como falido[2].O segundo, mais grotesco, é dizer que perante uma crise económica a culpa não está no mercado e, claro, em quem o sustentou politicamente durante décadas, não, a culpa está do lado de quem teima em contrariá-lo, e pior, daqueles que mais nada devem esperar do que existir como parte do mercado, nunca para além dele.
É aqui que retornamos a Barthes. Pois sendo, segundo ele, o mito uma fala despolitizada e em divórcio com o conhecimento, será a fala que permanece política aquela que se lhe deve opor. É por isso que para enfrentar o mito do mercado no caso da imigração é necessário, claro, desmascarar a correlação xenófoba e desonesta entre imigração, desemprego e criminalidade, mas ir mais além, é preciso uma proposta que rompa com o fim próprio deste mito, o de “manter imobilizado o mundo”. Tal implica uma concepção para além do mercado, implica reconhecer o imigrante na sua multitude, nas suas insuficiências e generosidades, e mais, implica reconhecer a sua capacidade emancipatória face ao próprio mercado. Essa emancipação não se conseguirá com uma conciliação (principalmente a dos discursos paternalistas e bacocos), ela terá de ser uma oposição, uma oposição que una, em toda a sua heterogeneidade, aqueles que são usurpados pelo elemento comum, ou seja, os donos do mercado. É esta oposição que pode desmistificar os modelos falidos, (Multicultural, Comunitário, Republicano), eles próprios frutos de uma oposição nacionalista e patriótica e desempenhar um papel decisivo nas representações colectivas avançando na contra-corrente da xenofobia e da exploração.
E daqui o realço à fibra e legitimidade dos imigrantes e dos que a eles se juntam para exigir o direito à residência, contra a exploração laboral e exclusão social mas também para exigir o direito ao voto como instrumento de emancipação face a uma política discriminatória, delatória e mentirosa. É uma luta premente porque trata de uma infelicidade e só a consciência da infelicidade alavanca a necessidade da mudança.
[1] Este mecanismo [o Frontex] misto, composto por forças policiais e militares, tem servido de pretexto para a NATO alargar a sua presença estratégica no continente africano, descendo cada vez mais a sul do Atlântico. Prova disso foram as recentes manobras da NATO em Cabo Verde. Aliás, desde os dramáticos acontecimentos de Ceuta e Melilla, deu-se um passo importante para transformar a Frontex no principal instrumento de repressão contra os imigrantes.” (Mamadou Ba, )
[2] Vagas indicativas de emprego imigrante para 2008:De 8.600 vagas indicativas de emprego imigrante em 2008 apenas corresponderam 3300 vistos de residência atribuídos.
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